quarta-feira, 14 de outubro de 2009


1. JH: Percurso: Marcos: como é que você começou a escrever? Por que é que isso e não outra coisa? (10/10/09)


MV: Minha mãe me ensinou a escrever e com quatro anos eu transcrevi a música do jabuti, no disquinho dos animais, levei uma tarde inteira fazendo. Mas pra mim, sem ninguém saber. E todo mundo ficou orgulhoso.

Eu sempre fui muito escolarizado, agora que tou tentando perder a mania. Mas a escrita foi sempre uma coisa que eu soube fazer e fui elogiado por isso.

Quando eu entrei na adolescência queria muito ser cineasta, era um plano de carreira pro qual eu me orientei. Até me desinteressar naturalmente. Também sempre fui muito tímido e a escrita pode ser uma atividade tão introspectiva a ponto de você poder rasgar tudo o que escreveu e não entrar em contato nunca com ninguém. Extrema timidez.

Mas isso é só uma coisinha, né, claro que eu não escrevo por isso. Seria avareza fingir. Hoje, "outra coisa" me soa distante como a China. A escrita, pra mim, é um momento sei-lá de possessão: viro mula do indizível. Não é um transe: é uma força / estranha / que me leva a cantar / por isso é que eu canto / não posso parar. E acho que foi isso desde a música do jabuti. É um mistério, né? É mágico.




2. JH: Sei que você começou a escrever criança, assim como yo. Qual era a relação que você tinha com os livros escritos e nas estantes? Mudou? Se sim, no que e como é que foi que ela mudou?

MV: Meu pai, com quem eu nunca me dei bem, tinha todos os livros da Agatha Christie, do Frederick Forsyth e de gente parecida. Eu gostava de vê-los, de ler os títulos e contemplar as capas (não lia, sempre tive muita preguiça). Tinha um com um desenho de um homem-demônio. Eu achava lindo, tanto que não conseguia esconder que achava. Minha avó católica falava que era feio e ponto, mas sem me obrigar a nada. Era bem bonito, mesmo.

O primeiro livro que minha mãe me deu chamava-se A história do lobo e era a versão do Lobo Mau pra história da Chapeuzinho Vermelho.. Nessa versão, o lobo não era mau coisa nenhuma, o caçador e o lenhador é que tinham armado pra cima dele. E ele fugia e fugia desses dois, que queriam matá-lo antes que ele contasse a verdade pra alguém. No livro, ele encontra umas crianças e conta a história real pra elas. Mas logo ele precisa voltar a fugir. Era muito triste.

A primeira profissão que eu quis ter era a de detetive. A segunda era de escritor. Eu via a Ruth Rocha e o Pedro Bandeira em fotos nas orelhas dos livros e achava aquilo glamour, poder e sedução.. Um dia minha mãe falou que escritor tudo morria de fome e eu deixei de querer ser escritor e fiquei escrevendo, só.

Aí eu fiz Letras, né. Não sei como foi isso pra você. Mas acho que, para mim, ter a autoridade (aos olhos dos outros) de um bacharel em Letras ("em terra de cegos...") de certa forma (junto com um monte de coisas, claro, nada nunca vem sozinho) me fez deixar de QUERER ter essa autoridade, que é uma coisa que eu noto em muitas pessoas que, como eu, não vêm exatamente de um ambiente letrado mas curtem ler. E que aí começam a se afirmar num letramento pueril, de menino sem amigos. A faculdade de Letras me libertou nesse sentido (me deu muitos amigos, também :), acho, que é de ver os Poetas não em pedestais, mas ao seu lado dizendo pra você, feito Virgílio no Inferno: guarda e passa. "Olha e continua".

Agora, especificamente sobre os livros, a música "Livros" do Caetano é a minha resposta. No colégio eu ficava escrevendo e reescrevendo a letra da música no caderno e achando aquilo absoluto - em vez de fazer as atividades propostas. O disco é de 97, eu estava na sexta série. Desde então, this is it.

E tem o clipe, que vale o mesmo tanto.

(11/10/09)



3.JH: já que você citou "Livros" do Caetano e sei que ama aos livros com o amor táctil: as idéias são tão sedutoras quanto as formas? (14/10/09)


MV: Aqui vou ser radical: acho que são tudo formas.. A gente é materialista e ponto. Mesmo o que a gente projeta pra fora/ de fora, essa projeção é sempre um jeito de corpo, um modo do corpo.

As ideias só existem enquanto matéria, nem que essa matéria seja só o virtual das palavras na cabeça. Assim como o táctil carrega junto o virtual, todo táctil é simbólico em alguma medida.

Perceber isso é a experiência religiosa.


4. JH: se o livro é um centauro? o que é uma biblioteca?

A biblioteca é o safari do maravilhoso!

Alexandria fez muito bem de queimar, o que não quer dizer que todas as bibliotecas tenham que morrer também. Essas coisas só valem se forem espontâneas, é a revolução do acaso, que nem com o Oiticica.

Gosto muito de bibliotecas e às vezes penso a sério em ser bibliotecário, mas tem a burocracia do caminho que me dá preguiça.

Quando eu tinha catorze anos e comecei a sentir claustrofobia em Jundiaí, às vezes uma falta de ar que era um negócio insuportável, eu saía que nem tiro pela cidade e um dia entrei na biblioteca e comecei a me sentir melhor. Fiz isso sempre. Acho que uma estante é como um horizonte, nem que você esteja em sala fechada.

É lógico que tem sempre um perigo de controle, como em tudo. De restrições, proibições, de morte do horizonte.. E é por isso que acontecem as combustões.



5. JH: você escreve quanto com o corpo? de homem?

MV: Tou pelado enquanto respondo. Mas não costumo ficar pelado porque pego gripe fácil.

Acho que o que eu mais escrevo são as sensações do corpo. Às vezes encarno de descrever e fico um tempão atentando a um movimento ou calor pra poder definir em palavras, conceitos.. Mas, no geral, eu sou mais feliz escrevendo quando as palavras tomam elas mesmas corpo e formam alguma experiência física. Isso acontece mais frequentemente com a sonoridade, acho, mas não sei. Enquanto eu escrevo, se tem algum nível de possessão, é isso que eu faço.

Mas não escrevo com o pé nem com a bunda. Uso mesmo os dedos. O dedo da mão tem uma coisa que é de penetrar, mas também de ser totalmente controlado pela razão (coisa que não acontece, por exemplo, com os dedos dos pés, que são mais durões e às vezes têm uns movimentos que a gente não ordena).

Escrever tem isso, né, de penetrar. Fisicamente. O movimento do dedo na tecla do teclado. E, à mão, segurar a caneta também é simbólico. Escrever com o corpo é isso, aproveitar o corpo pra um prazer. Nesse sentido, é bem sexual.

Quanto a ser homem. Isso é uma coisa que eu não sei. Quero dizer, sei que sou socialmente reconhecido como homem e que mesmo eu me reconheço assim boa parte do tempo.. O Mia Couto fala uma coisa bonita sobre escrever ficção, que é a possibilidade que você tem de ser qualquer um/a e qualquer coisa, nem que seja só por uma linha. Acho que eu escrevo um pouco pra deixar de ser homem.

Mas o corpo masculino é uma experiência que eu tenho. Os modos de corpo masculino. Tanto meus quanto de outros. Isso me dá também toda uma resma de sensações que vão sempre para os dedos. Ontem mesmo eu anotei num diário, depois de voltar de uma fast-foda, que o mais legal da sacanagem é poder escrevê-la depois. Ou antes.

Uma outra coisa que me marcou muito - e acho que marca qualquer menino - foram as ereções que eu tinha na escola, por exemplo, em lugares públicos, eu que eu não queria ter um corpo. Eu detestava o meu corpo, tinha um desejo de autoaniquilação muito forte e ficava lá deprimido na aula de matemática quando, de repente, sem avisar antes, o pinto ficava duro e demorava quarenta minutos assim. Era o corpo à revelia. Nisso, também similar à escrita, que é uma atividade à revelia. Acho que gostar do que é à-revelia é gostar de viver, que tal?

Mas acho que ser homem não tem nada a ver com o corpo.

(21/10/09)


 

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